30.5.12

Ainda vivo, senhora!

Autor:
Imagem - Hector Retamal, durante protesto de estudantes em Santiago, por educação gratuita para todos (25/04/2012)
Poesia - Danízio Dornelles
Sob a pele castigada,
Distante das matilhas
(Ferozes quadrilhas,
do povo, algozes)
Ainda se pode amar!
Ainda bandeira!
E, embora não queiras,
me atrevo a sonhar...
Entrego a utopia,
Sangue, poesia...
Da vida ao instante,
Na luta e na crença,
A eterna presença
dos mortos de antes.

28.5.12

O vestido da morte


Autor:
Imagem - desconhecido
Poesia - Danízio Dornelles
O vestido da morte se arrasta pela terra
Escurece os olhos das searas repartidas
Amarra corpos com os fios dos alambrados
Semeia a fome sobre a terra prometida

O vestido da morte é escuro como a noite
Carrega a poeira dos decretos assassinos
Quando escurece vem beber o sangue alheio
Na condição que a ganância determina

Em cada enxada que emudece sobre a terra
Fica a semente da partilha, adormecida
Seguem na estrada, contra o vento e a cobiça
Atrás a morte, arrastando seu vestido

E pelos rastros de quem parte, de quem fica
Há uma certeza feito carne, feito prece
Os alambrados são o sustento da morte
Que veste o luto daqueles que anoitecem

25.5.12

Noturno em claridade


Autor (poesia/imagem): Danízio Dornelles

Perfil noturno
A noite espia da crista das janelas
o destino errante dos que passam.

Como eles, caminho...
Sigo o pássaro sol
(de carne ou de luz?)
Passageiro,
navego alado
em invisíveis ondas

A mulher que amo
dilui meu riso se ausência

Amo simplesmente,
carne ou luz...
Perfil noturno de claridade
loucura insurgente nos fantasmas
invisíveis aos olhos do mundo

Utopia que anoitece a claridade,
noturno que transcende o delírio
do próprio amor e de si mesmo

Uma trégua da fome

Autor:
Imagem - Aparício Reis
Poesia - Danízio Dornelles
Vai um menino caminhando pela rua
E sua dor é bem maior que a escuridão
Porque nas pedras que pisa lentamente
Morre a semente de outra geração

Tudo que havia era um pedaço de vida
Nas mãos inocentes querendo viver
Pedindo nas praças, nas portas fechadas
Nos carros parados, pelo anoitecer

Tudo o que havia era um fio de esperança
Nos olhos escuros de um menino de rua
A fome de amor, pior que a de pão
Perdeu a razão e cantava pra lua

Tudo o que havia eram flores nubladas
Ambição, desamor e ausência de paz
Um menino de rua morre de repente
Um sonho inocente, então, se desfaz

E os homens prometem às mães dos meninos
Traze-los de volta em decretos vazios
Como se a ganância descesse do trono
Pra salvar do abandono os que morrem de frio

À sombra das casas com grades de ferro
A inocência padece e a morte consome
É a infância das flores na luz da agonia
Clamando em poesia uma trégua da fome

Do DVD XIV Fecanpop
L: Danízio Dornelles / M: Vitor Mülling
Premiada como melhor conjunto instrumental

9.5.12

Confabulação entre Mar e Tempestade


Autor:
Imagem - desconhecido
Poesia - Danízio Dornelles
A tarde retirante,
ferida pelo punhal noturno,
espraia os últimos sussurros.
– Que é o amor? – indaga o mar à tempestade
(perdido em redemoinho sem volta)

A jangada se perde
na linha do infinito,
entre mar e tempestade;
entre vida, morte, eternidade,
suspiro incontido e delírio dilacerante,
angustia dos dias que não passam,
febre dos instantes que ficam...

Contra a corrente,
em águas revoltas,
o esvoaçar do vento
cintila a embarcação.
Os remos do deus-destino
tocam, incestuosos, o corpo das águas,
tocam o corpo de quimera
(que também é natureza),
beijam os olhos daquela
a quem chamo de amor.

O vendaval dissipa a calmaria:
Oitenta raios insurgentes cingem o mar,
que, náufrago de si mesmo,
adentra a tempestade
num feitiço de luz e escuridão

– Que é o amor? – insiste o mar.
A tempestade apenas sorri...


Leia também:
Despedida
Paola
Desatino
A razão da poesia
Brilho oculto 

8.5.12

A Senzala era um Poema

Autor:
Imagem - divulgação/filme Amistad (1997)
Poesia - Danízio Dornelles
"Serão heróis os covardes
que sangraram a liberdade?
Nas charqueadas, nos engenhos,
nos templos de oração,
Os homens dobravam joelhos,
faziam preces a Deus,
Depois matavam os seus,
pra manter a escravidão..."

A senzala era um poema – incompreendido e inerte,
Silenciada por grilhões na escuridão do vazio...
E a chibata dos covardes (ante os gritos de agonia),
Semeava hipocrisia desde os porões dos navios...

E os negros adormeciam porque a dor os obrigava!
A senzala era um poema e seus versos, dissabores;
A morte na pele escura clamava outros sacrifícios,
Pra que seguisse o ofício e a ganância dos senhores.

A senzala era um poema e sua estrofe, a confidência
Dos filhos que nasceram ao martírio condenados;
Nos açoites assassinos, suor e sangue sobre a terra:
É a vida que se encerra na indigência dos tratados!

Pele negra, a tempestade – tanta morte a cada vida,
Os cativos juntam restos – e é tão injusta a justiça...
A senzala era um poema e em seu desfecho anunciado
Morreram os mutilados e prosperou a cobiça...

3.5.12

Gente em movimento


Autor:
Imagem - desconhecido
Poesia - Danízio Dornelles
O mundo se movimenta
nos passos de gente
que caminha,
apesar de tudo;
que perde os pedaços,
mas não recua...
Gente como essa gente,
que dá as mãos e não se cala
frente às máquinas da morte;
Gente mutilada,
com sonhos inteiros,
com ternura nos olhos
e tormentas em si,
Gente que não ama pela metade,
que não vive morta,
mas que morre viva;
Que é flor e fruto,
raiz e semente...
Apenas gente,
e nada mais.