25.7.14

Ocaso

Imagem: Google/Reprodução
Poema: Danízio Dornelles

Ele era o silêncio
A gris amplidão
A face escondida
No avesso do não

Ela, redemoinho
Que vem, dilacera
O brilho do fogo
Queimando a espera

Ele, pôr-de-sol
Numa noite qualquer
Encantou-se do vento
Qual fosse mulher

Ela era muitas
A foice, a prisão
A maçã da promessa
Tão perto da mão

Ele, calmaria
Soturno, abstrato
Moldura do tempo
Qual fosse retrato

Ela era assim
(que se há de fazer?)
Espinho que sangra
A carne a morrer

Ele, o espelho
Da sombra que passa
Imagem do algoz
Que ora lhe abraça

Ela era 'Werther'
Porém pelo avesso
A ditar 'Noites Brancas'
Nas quais adormeço

Mas um dia, o acaso
E dois passarinhos
Vestidos de asas
Nublaram o ninho

2.5.14

Voracidade

Imagem: Google/Reprodução
Poema: Danízio Dornelles

Autodevoro
teus paradigmas
milimétricos
na geografia dos passos
sobre as pedras

Autodevoro
se te devoro
e me devoro
te devorando

Autodevoro
pelo alto
o azul do teu céu
em nuvens e boca...

Translúcido gozo
onde pássaros
em cores
bebem poesia

Autodevoro-te
Autodevoro-me

num único substrato
da mesma substância
que exclama
almas libertas
em alquimia
corpos acorrentados
em chama

15.2.14

Refrão

Poesia/Imagem: Danízio Dornelles

Ingênuo fado
(que fascina)
deixa sementes
(de amor)
em bolas
de algodão;
a alma em flor
(de lua se ilumina)
num beijo
que amanhece
o gosto da estação

14.2.14

Dissabor

Poesia/Imagem: Danízio Dornelles

Amargo é o gosto do que não sinto
No verbo exposto em suor e absinto
Na escuridão a esmo e de mim mesmo
Margeia o fogo - e já o pressinto

Como num jogo ou num labirinto
A nuvem negra absorve a lua
Depois desvenda - delírio e afago
O mistério vago da imagem nua

Estás e não estás, cantiga e riso
Eis que te tenho, em carne e voz
Depois o abismo fecunda o espinho
E pelo caminho, só rastros de nós

5.2.14

Previsão

Poesia/Imagem: Danízio Dornelles

Dissolvido pela poeira do silêncio
Caminho a procurar-te, desternura
Pode ser que te encontre num espinho
Que é o amor mais real de quem procura

Pode ser que te encontre numa brisa
Que toque o rosto no epitáfio pelo avesso
Pode ser que te recorde mesmo assim
Buscando fim onde nem houve começo

Pode ser... pode ser que eu adormeça
Mal ferido por dragões ou por moinhos
Sucumbindo ao labirinto de mim mesmo
Sangrando a esmo o vazio de ser sozinho

Colheita

Posia/Imagem: Danízio Dornelles

Semente de teus passos
plantei na estrada de terra
o riso gravei nas pedras
o gosto, no temporal

Amanheceu

o dia feito de sol
caminho feito de asfalto
colheita feita de sal

4.2.14

Epílogo

- Imagem: Anna Yakova - Ramificações de árvore com as folhas de outono penduradas sobre o Rio Fontanka, Jardim de Verão, São Petersburgo, Rússia
- Poesia: Danízio Dornelles

Não florescerão mais girassóis em Amsterdam
Nem García Lorca pensará sobre o amor
Ficaremos para sempre adormecidos
Num baú sem cores, que perdeu o seu valor

Caminharemos por campos ondulados
Compondo estrofes de uma inerte poesia
Enquanto o sol queimar-te-á em desalinho
Sucumbirei ao ocaso de outro dia

Morreremos na promessa de uma tarde
No tabuleiro de pedras, na aquarela de um louco
Seguirei teu rastro sob a luz do esquecimento
Já curvado pelo tempo, que anoitece pouco a pouco

Teus rumos brandos beberão outros mistérios
Cada qual com suas luas pela frente
E a primavera, ao buscar o Rio Fontanka
Não beijará nada além de uma semente

31.1.14

Renúncia

Poesia/Imagem: Danízio Dornelles
Por ora sou pedra
inerte ao rio
que disseca meu corpo

Da margem esquerda,
te contemplo:
radiante estás
como as brancas ondas
da lua que não temos

Um coração de carne
me ameaça
mas é tarde

há tempos
não o escuto
em tal descompasso
tal desespero
entre pétalas
de pedra e cimento
no metal de meu silêncio

Que desacelere
ou despedace!

Ingênuo fardo de carne,
que pulsa
sensível aos cativeiros
que brotam em brancas luas
como se a noite queimasse

Chama

Poesia/Imagem: Danízio Dornelles
Na madrugada
onde quase tudo é silêncio
espreitam nas janelas entreabertas
as vontades maldormidas

Com suas luzes brancas 
que adentram veias
percorrem
a corrente sanguínea da noite,
que pulsa

Roubam as chaves da quietude
num torvelinho surreal
de cores vivas
sobrepostas à realidade morta

Arte metafísica do encantamento
(platônico por um fio
ou por um fim)
teus cristais de pedra são alamedas
por onde caminho

Sonho que move o mundo
e gira os pedais do tempo
presente estás
como uma utopia
que escorre entre os dedos

como um quadro psicodélico
do amor e de si mesmo
como a fosforescência de mundos
entre esses dois olhares
num infinito de luas
que só as noites compreenderão

30.1.14

Fragmento da mulher que encanta

Imagem: Google/Divulgação
Poesia: Danízio Dornelles

A Deusa que rege os mares
e meus passos
sabe o risco que corro
quando o sol projeta
poesia densa
no farol dos olhos

Em pétalas de lírio
repouso o metal
do inevitável silêncio,
segredo que divido com Ela
e com o rio

A mulher que encanta
tem jeito de borboleta ou flor
quimera ou cachoeira;
mas posso evitá-la

Tem um semblante
de pequena cascata
cristalinas ondas
que se desvelam
em fachos incandescentes
como a lua branca
que não temos;
mas posso evitá-la

A mulher que encanta
tem canto de ave
e seus passos são semeaduras
onde floresce o viço
da utopia que queima;
mas posso evitá-la

A mulher que encanta
caminha nua
mas veste-se de brilho
transita entre a sutileza dos dias
e o mistério noturno
das luas de pedra

É uma cidade imersa
de sóis e vidraças
onde minh'alma passa
querendo ficar

A mulher que encanta
acende uma brasa
e fica a soprar
uma chama febril
uma pedra de fogo
utopia sem asas
à direita de mim

E neste enlace
de céu e porvir
(entre terra e mar)
o sol que amanhece
a se repetir
traduz a sentença
da mulher que encanta:
- Poderei evitar?

16.1.14

Florescer tardio de uma pequena morte da paixão

Imagem: Divulgação
Poesia: Danízio Dornelles

para Alan Redü (e seus enleios de afago)
"Que todo grande amor
só é bem grande se for triste" 
(Vinícius de Moraes)

Cala frio

na tempestade da noite
um pecado vazio

Amar
à luz da inversa utopia
é diluir-se em si
e no tempo
para encontrar-se em alguém
ou por aí...

Que rima buscas
onde já não há mais verso?
E que verso trazes 
no desvario secreto
do fruto do sonho
que em carne secou?

Caminas por la noche
y los perros y brujas 
son tus mejores compañeros

Querias voltar o tempo,
suprimir os ponteiros
que acorrentam teus braços
e cerram tua alma

Mas o disparo que queima
e a rebeldia do rio
se perdem no horizonte
onde repousam os desamores

Alheia à ferida
uma lua branca,
angelical,
sorri ao fascínio
por saber-se lua
por saber-se amada
ou talvez mulher

Nela repousa a chave dos dias
e dos medos
qual um segredo fúnebre
que, em vão, tentamos esquecer

Toda vez que o amor anoitece
aflora uma pequena morte
na madrugada dos dias mais azuis
e fica a procurar caminhos
na bruma inerte da paixão roubada

Rondando... rondando...
es como una mariposa negra de la mala suerte

Entre cicatrizes e desencantos
repousa o canto das aves noturnas
cujo voo singra o breu
e em cujas asas navega o mistério:

Amor,
último passo antes do abismo
por onde nos conduz a insensata paixão...
no caminho, emplumadas asas
ou rochedos de espinho

Navegar
é beijar ofegante os lábios puros
da Deusa-Descoberta
(onde quase tudo é permitido
em sua alma liberta)
exceto fazer da margem
secreto marasmo
de um porto seguro